Os Programas de Meliponicultura nas populações da região Amazônica

Gislene Almeida Carvalho-Zilse (gislene@inpa.gov.br) – Grupo de Pesquisas em Abelhas (GPA), Coordenação de Biodiversidade (COBIO), Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Manaus-AM.

Figura-1-ProgramasA Amazônia abriga uma vasta diversidade de abelhas nativas sem ferrão assim como de povos amazônicos os quais, desde sempre, convivem com estes insetos e lhes conferem diferentes nomes, valores e usos. Ainda que historicamente se saiba que os povos amazônicos tenham uma intrínseca relação com estas abelhas, raros são os registros bibliográficos acerca disto. Ao mesmo tempo se observa, com frequência, a presença de cortiços ao redor das habitações em comunidades do interior. É notoriamente comum, durante as expedições científicas e atividades de extensão, ouvir relatos sobre os usos dos produtos das abelhas na rotina diária destes povos: uso do mel e do pólen nas preparações de remédios denominados “garrafadas” (xaropes, remédios feitos com ervas e mel); consumo de água adoçada com mel; cerume manipulado para calafetar canoas e barcos, além de polir e dar acabamento em artesanatos, em flechas, etc (Kerr et al., 2001; Carvalho-Zilse e Nunes-Silva, 2012; Carvalho-Zilse, 2013).

Num dos primeiros registros sobre a atividade de Meliponicultura na Amazônia, Kerr et al. (1967) descrevem a atividade para a região de Manaus, apontando o uso de caixas rusticas para criação e destacando que a espécie Melipona seminigra merrillae (localmente conhecida como uruçu-boca-de-renda ou jandaíra) chegava a produzir até 20 litros de mel por ano, o dobro do que era obtido para abelhas Apis mellifera na mesma região e época.

Apesar de, ainda hoje, se verificar o extrativismo de ninhos naturais em algumas áreas do interior do Amazonas na busca pelos produtos das abelhas sem ferrão, muita coisa mudou e a atividade de Meliponicultura se estendeu por toda a Amazônia, especialmente no Estado do Amazonas, em busca da profissionalização. Iniciou-se assim um caminho para o ordenamento legal da atividade junto aos órgãos oficiais de licenciamento no Amazonas em atendimento à crescente demanda dos meliponicultores para proposição de uma cadeia produtiva da Meliponicultura no Estado. O marco zero legal deste movimento foi a Audiência pública promovida pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Pesca, Aquicultura, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas (CAPPADR), ocorrida em 28/04/2016, que encaminhou a formação de um Grupo de Trabalho (GT-Meliponicultura) com a finalidade de discutir e propor normativas acerca da abrangência ambiental e econômica da Meliponicultura bem como as especificações para o mel de meliponinios, além de levantar demandas para a Política Estadual da Meliponicultura. O GT-Meliponicultura envolveu representantes de órgãos do governo (CAPADR-Câmara dos Deputados; ALEAM-Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas; IPAAM-Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas; SEPROR/IDAM-Secretaria de Produção Rural do Amazonas/Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas; SEPROR/ADAF- Agência de Defesa Agropecuária e Florestal do Estado do Amazonas; SEMA-Secretaria de Estado do Meio Ambiente), de meliponicultores (COOPMEL-Cooperativa dos Criadores de Abelhas Indígenas do Amazonas; ACAM-Associação dos Criadores de Abelha do Amazonas); de instituições científicas e de educação (INPA-Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia; UFAM-Universidade Federal do Amazonas; EMBRAPA/Amazônia Ocidental- Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária; Instituto Mamirauá; IFAM/Manaus/Zona Leste-Instituto Federal de Educação do Amazonas) e do CRMV/AM-Conselho Regional de Medicina Veterinária do Amazonas.

Os trabalhos deste GT culminaram na definição dos marcos legais da Meliponicultura no Amazonas:

1) a Portaria ADAF-AM Nº 253 de 31/10/2016 (publicada no DOE em 01/11/2016) que aprova o Regulamento Técnico de Identidade e Qualidade do Mel de Abelha Social Sem ferrão para o Amazonas, considerando a “evolução tecnológica e o aumento inegável de produção no setor de industrialização do mel de abelha social sem ferrão e derivados bem como o valor desta atividade para a economia local e regional”;

2) a Lei No 4.438, publicada no DOE em 16/01/2017, que altera a redação do § 4º do artigo 5º e acrescenta o código LAU (Licenciamento Ambiental Única) 3709 ao Anexo I da Lei nº 3.785 de 24/07/2012, que “Dispõe sobre o licenciamento ambiental no Estado do Amazonas e revoga a Lei nº 3.219, de 28/12/2007, e dá outras providências”, instituindo-se a partir de então a isenção dos valores de licenciamento ambiental da atividade de Meliponicultura junto ao IPAAM (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas), e;

3) a Resolução Nº 22 do CEMAAN (Conselho Estadual de Meio Ambiente do Amazonas) de 03/04/2017 (publicada no DOE em 20/04/2017) que “considerando o valor da Meliponicultura para a economia local e regional”, estabeleceu as normas para a “criação, manejo, transporte e comercialização de abelhas sem ferrão (meliponineos) e seus produtos no Estado do Amazonas”.

O GT-Meliponicultura construiu, ainda, a Minuta do Projeto de Lei para a Política Estadual de Meliponicultura, PL nº 202/2017 que foi aprovado, por unanimidade, na Assembléia Legislativa em 28/11/2018 e aguarda publicação.

Concomitante a estas construções coletivas, surge a Redemel-Rede do Meliponicultores do Amazonas, integrada por meliponicultores e interessados na atividade, que visa levantar e discutir as necessidades da cadeia produtiva da Meliponicultura, bem como propor e apoiar ações para o avanço da profissionalização da atividade no Amazonas junto aos órgãos competentes e as associações de meliponicultores e afins.

Estes avanços legais para a profissionalização da Meliponicultura no Amazonas, refletem o afloramento do interesse pela atividade no Brasil, de modo geral, a partir do conhecimento da biologia e reprodução das abelhas sem ferrão bem como pelo desenvolvimento e popularização de modelos de caixa para multiplicação das colônias e técnicas de manejo para aumento da produção. O modelo de caixa de madeira alçada proposto por Mariano-Filho (1911) inspirou o aprimoramento destas nas proposições de Nogueira-Neto (1948; 1997); Portugal-Araújo (1955); Oliveira e Kerr (2000); Venturieri et al. (2004); Carvalho-Zilse et al. (2005), dentre outros, considerando-se as necessidades biológicas das espécies nas diferentes regiões brasileiras. Atualmente no Amazonas, os meliponicultores utilizam o modelo recomendado pelo INPA (Carvalho-Zilse, 2013), o qual foi amplamente testado em campo para mais de uma dezena de espécies de abelhas amazônicas, e demonstrou efetivo sucesso na multiplicação, desenvolvimento e produtividade das colônias.

Neste breve histórico, merecem destaque duas iniciativas que promoveram o incentivo à Meliponicultura no Amazonas: 1 – O Projeto Abelhas e Polinização de Plantas da Várzea (realizado entre 2003 a 2005 junto ao ProVarzea – Projeto de Manejo dos Recursos), coordenado pelo Grupo de Pesquisas em Abelhas do INPA que realizou a capacitação em Meliponicultura em 35 comunidades distribuídas em 10 municípios do Amazonas e 1 do Pará, totalizando 303 famílias criadoras de abelhas; e, 2 – O Programa de Meliponicultura para o Estado do Amazonas, iniciado em 2003 e coordenado pelo Departamento de Animais Silvestres da Agencia de Florestas e Negócios Sustentáveis do Amazonas (AFLORAM) junto à Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SDS), que realizou ações de incentivo à Meliponicultura como uma atividade geradora de renda e bem estar social e ambiental em diferentes áreas rurais e adjacências urbanas estabelecendo Pólos de Meliponicultura nos municípios de Boa Vista do Ramos, Manacapuru e Benjamin Constant. Atualmente, no Amazonas existem pelo menos quatro associações de meliponicultores (COOPMEL-Cooperativa dos Criadores de Abelhas Indígenas da Amazônia em Boa Vista do Ramos; IRAMAN-Associação dos Meliponicultores das Regiões do Médio Solimões e Baixo Rio Negro; APMEL-Associação dos Produtores de Mel de Benjamin Constant; e Instituto Iraquara-Associação de Promotores da Atividade de Meliponicultura do Estado do Amazonas) além de duas empresas (AMAZOMEL-Produtos e Serviços Apícolas; EMAZON–Empresa de Consultoria Agroflorestal na Amazônia Ltda) envolvidas na atividade. Infelizmente não há registros oficiais sobre a produção de mel destas associações, mas por informação pessoal, a COOPMEL relata a produção de 500 kilos de mel de abelhas Melipona no ano de 2018.

Tomados juntos, estes dados definitivamente colocam a Meliponicultura amazônida no contexto das atividades econômicas do Estado e, sua prática, na promoção da diversificação e uso sustentável da terra da Amazônia.

A questão ambiental e efetivas ações em prol de sua execução sempre foram atitudes marcantes da vida do Prof. Paulo Nogueira-Neto, um dos ícones promotores da Meliponicultura no Brasil. Tive o imenso prazer de conhecê-lo à época de meu Mestrado em Genética (pela Universidade Federal de Uberlândia, 1996) quando este solicitou-me cópia da dissertação a fim de citá-la em seu novo livro a ser lançado em 1997 (Vida e Criação de Abelhas Indígenas Sem Ferrão; p. 66). Sua avidez pelo conhecimento e profundo respeito pelos produtores das informações, muito me impressionaram, especialmente pela minha condição de iniciante no mundo acadêmico e da Meliponicultura. Dali em diante, meu apreço e admiração pela postura dedicada, respeitosa, interativa e incentivadora do Prof. Paulo, a qualquer pessoa que dele se aproximasse, tornaram-se profundas e sólidas. Como orientada do Prof. W. E. Kerr, outro pilar da Meliponicultura brasileira, testemunhei vários encontros cordiais entre ambos assim como assisti inúmeras citações do Dr. Kerr ao seu amigo pessoal como referência científica e humana. Testifiquei tais qualidades por meio de cartas, telefonemas e encontros pessoais. Sempre fui ouvida com consideração e respeito pelo Prof. Paulo e, com a didática que lhe era peculiar, era ensinada com carinho e sapiência. No Amazonas, tivemos a honrada e alegre participação do Prof. Paulo no II Encontro de Criadores de Abelhas do Amazonas (ocorrido em maio/2002 em Manacapuru-AM), ocasião em que ele pode visitar comunidades envolvidas no Projeto ProVarzea e motivar-nos apontando caminhos efetivos para o progresso da Meliponicultura no Amazonas. Obrigada Prof. Paulo!

Referências

Carvalho-Zilse, G.A. 2013. Produção de polinizadores para a agricultura na Amazônia. In: Noda, H.; Souza, L.A.G.; Filho, D. F. S. (Ed.). Pesquisas Agronômicas para a Agricultura Sustentável na Amazônia Central. Ed. Wega, 2013. P. 19-26.

Carvalho-Zilse, G.A.; Nunes-Silva, C.G. 2012. Threats to the stingless bees in the brazilian amazon: how to deal with scarce biological data and an increasing rate of destruction. In: Bees: Biology, Threats and Colonies. Ed. Nova Publishers. Chapter 4. pp 147-168.

Carvalho-Zilse, G. A.; Nunes-Silva, C. G.; Zilse, N.; Silva, A. C.; Boas, H. C. V.; Laray, J. P. B.; Freire, D. C. B.; Kerr, W. E. 2005. Criação de abelhas sem ferrão. Iniciativas Promissoras 2: Projeto Manejo dos Recursos Naturais da Várzea. Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis-ProVárzea/IBAMA. Brasília: Edições IBAMA. 27pp.

Kerr, W.E.; Sakagami, S. F.; Zucchi, R.; Portugal-Araújo, V. & Camargo, J. M. F. 1967. Observações sobre a arquitetura dos ninhos e comportamento de algumas espécies de abelhas sem ferrão das vizinhanças de Manaus, Amazonas. In: Simpósio Sobre a Biota Amazonica, Zoologia. Atas. v.5 p.255-309.

Kerr, W. E.; Carvalho, G. A; Silva, A. C.; Assis, M. G. P. 2001. Aspectos pouco mencionados da biodiversidade amazônica. Parcerias Estratégicas, 12: 20-41.

Mariano-Filho, J. 1911. Ensaio sobre as meliponidas do Brazil. Edição do autor. 140p.

Nogueira-Neto, P. 1948. A colmeia racional para algumas de nossas abelhas que não ferroam. Chácaras e Quintais v.77 n.3 p.311-313, 426-428, 559-561.

Nogueira Neto, P. 1997. Vida e criação de abelhas indígenas sem ferrão. Editora Nogueirapis, São Paulo. 445p.

Oliveira, F. & Kerr, W. E. 2000. Divisão de uma colônia de japurá (Melipona compressipes manaosensis) usando-se uma colméia e o método de Fernando Oliveira. Manaus-AM: Ministério da Ciência e Tecnologia. Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA. 10p.

Portugal-Araújo, V. 1955. Colmeias para abelhas sem ferrão. Boletim do Instituto de Angola n.7 p.9-31.

Venturieri, G. C.; Raiol, V. F. O.; Pereira, C. A. B. 2003. Avaliação da introdução da criação racional de Melipona fasciculata (Apidae: Meliponina), entre os agricultores familiares de Bragança-PA, Brasil. Biota Neotropica, 3 (2): 1-7.