A abelha sem ferrão jati do Nordeste, Plebeia flavocincta (Cockerell, 1912): distribuição no passado, atual e futura

Ulysses Madureira Maia1,2, Leonardo de Sousa Miranda2, Airton Torres Carvalho3, Vera Imperatriz-Fonseca4, Guilherme Corrêa de Oliveira2, Tereza Cristina Giannini1,2
1Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil.
2Instituto Tecnológico Vale, Belém, PA, Brasil.
3Unidade Acadêmica de Serra Talhada, Universidade Federal Rural do Pernambuco, Serra Talhada, PE, Brasil.
4Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo, SP, São Paulo, Brasil.

Conhecer a distribuição das espécies e como o clima influencia essa distribuição é fundamental para desenvolver planos visando sua conservação e manejo. Entre os animais polinizadores, especialmente as abelhas, um grande problema para esses planos é a falta de dados sobre sua área de ocorrência. No geral, o que se sabe sobre a distribuição de uma espécie de abelha é onde ela é encontrada, através de relatos de observação de sua presença em um determinado lugar e de depósitos de exemplares nas coleções para identificação e certificação (isto é, quando especialistas verificam se a espécie foi identificada corretamente). Deste modo, colocamos em um mapa os pontos onde a espécie foi registrada.

Entretanto, esses pontos onde as abelhas foram encontradas podem servir de base para estudos mais amplos, que consideram onde potencialmente essas espécies podem ser encontradas1. Para isso, modelos de adequabilidade de habitat são usados para correlacionar esses registros pontuais de uma espécie com as características do ambiente (como por exemplo, a temperatura e a pluviosidade). O clima é um importante agente determinante de variação de distribuição de espécies, principalmente para os insetos. Evidentemente, sempre houve uma dinâmica na distribuição de áreas climaticamente adequadas para as espécies, desde o passado mais remoto. Ou seja, em alguns períodos no passado, uma espécie pode ter tido muito mais áreas que em relação ao presente, ou até mesmo, ter tido menos áreas que atualmente. Porém, essa dinâmica tem sido acelerada no presente e será ainda mais acentuada no futuro, considerando-se as mudanças climáticas em curso, devido à emissão crescente de gases de efeito estufa. Portanto, as aplicações desta modelagem são importantes para fins de conservação e para construção de cenários sobre os impactos da mudança de clima e também sobre o seu uso sustentável1,2. O número de estudos com essa abordagem, usando abelhas sem ferrão (Meliponini) como objeto de estudo tem crescido nos últimos anos3,4.

Esse crescimento não é por acaso. O Brasil possui a maior diversidade de espécies de abelhas sem ferrão no mundo. Globalmente, são aproximadamente 600 espécies já conhecidas5. O Brasil abriga cerca de 300 destas espécies6, sendo que a região Neotropical (que compreende as Américas do Sul e Central) apresenta 420 espécies7.

As abelhas sem ferrão possuem importância tanto ecológica quanto econômica. A importância ecológica é, principalmente, devido aos serviços de polinização que elas prestam. Esse serviço é essencial para manutenção da vida no planeta, uma vez que a maioria das plantas com flores depende da polinização por abelhas. Já economicamente, além dos benefícios diretos e indiretos dos serviços de polinização através do aumento de safras de cultivos agrícolas, um grande número de espécies pode ser criado racionalmente a fim de gerar renda extra aos criadores por meio da produção de mel, própolis, além da multiplicação e venda de ninhos. Mesmo com tamanha importância, a maioria dessas espécies não têm sua distribuição geográfica bem conhecida, e geralmente são pouco estudadas. Essa lacuna de conhecimento é observada também para as espécies que ocorrem nas regiões Norte e Nordeste.

Plebeia flavocincta, popularmente conhecida como abelha mosquito ou simplesmente por jati, é uma pequena abelha com adaptações que a possibilitam ocupar áreas climáticas secas da região Nordeste do Brasil (Figura 1). Ela foi descrita em 1912 por Theodore Dru Alison Cockerell, um taxonomista anglo-americano, a partir de um exemplar da antiga cidade de Independência, hoje chamada por Guarabira no Estado da Paraíba, situada numa região de transição entre a planície litorânea e as elevações do Planalto da Borborema. A espécie também pode ser encontrada tanto nas áreas litorâneas como também nas áreas semiáridas. Sua ampla área de ocorrência somada à sua docilidade contribuem para que a espécie possa ser manejada facilmente em caixas racionais para produção de mel, considerado medicinal pela população do semiárido. Por ser uma abelha endêmica e muito comum (65% dos meliponicultores do RN têm essa espécie nos seus meliponários)8, é considerada um polinizador importante para a flora local. Estudos da origem do floral do alimento através da análise polínica de colônias estudadas na Flona de Assu no semiárido9 revelaram que elas visitaram 58 espécies de plantas. Essa abelha já foi encontrada nidificando em cinco espécies de árvores exóticas presentes em áreas urbanas em Pernambuco10 e em uma espécie de árvore nativa, a Cenostigma pyramidale (Tul.) Gagnon & GP Lewis (Fabaceae), popularmente chamada de catingueira11. O semiárido abrange a maior parte do Nordeste brasileiro e está sob forte risco de desertificação decorrente de diversos fatores, incluindo atividades humanas e mudanças climáticas. Cenários climáticos já preparados para a região sugerem para 2050 um aumento de temperatura e diminuição da precipitação, ocasionando um prolongamento maior das secas e uma estação de chuvas ainda mais irregular12. Além disso, é prevista uma redução dos reservatórios e dos fluxos de água subterrâneos e superficiais na área. Tais alterações poderão ser profundas e ter consequências sem precedentes12.

Figura 1. Operária de Plebeia flavocincta depositada no Instituto Smithsoniano (EUA) em vista lateral. Fotografia por Karolyn Darrow e cedida pelo curador Dr. Sean Brady.
Figura 1. Operária de Plebeia flavocincta depositada no Instituto Smithsoniano
(EUA) em vista lateral. Fotografia por Karolyn Darrow e cedida pelo curador Dr.
Sean Brady.

No presente estudo, estimamos a distribuição geográfica potencial atual de P. flavocincta e a influência do clima na dinâmica de disponibilidade de habitats adequados no passado, no presente e no futuro para essa espécie. Nós nos concentramos nos registros de ocorrência original da P. flavocincta a partir de plataformas digitais (GBIF e SPECIESLINK), ampliados com dados de coleta em campo, e buscamos entender como as flutuações climáticas poderiam ter afetado a dinâmica de distribuição da espécie no passado e como será no futuro.

Utilizamos a modelagem de adequabilidade de habitat como ferramenta para estimar as áreas de ocorrência no passado (último período interglacial e último período de máximo glacial), no presente e no futuro (anos 2050 e 2070). O último período interglacial, ocorreu há 120 mil anos, e é caracterizado como um período estável, em geral, mais quente e úmido que o período atual. Já o último período de máximo glacial (quando camadas de gelo cobriam grandes porções de terra e congelavam oceanos em algumas regiões) corresponde ao período mais frio e seco da última glaciação (período de resfriamento do planeta), há 20 mil anos.

De acordo com os nossos modelos, houve grande dinâmica na disponibilidade de habitats adequados para P. flavocincta, com períodos de retração e expansão dessas áreas no passado. A distribuição das áreas climaticamente adequadas no passado mais distante (último período interglacial, que ocorreu há 120 mil de anos) era maior que a distribuição atual das áreas. No entanto, durante essa escala de tempo, a espécie sofreu uma retração no período mais frio e seco (último período de máximo glacial, há 20 mil anos) e posterior expansão de suas áreas adequadas (período presente chamado de holoceno, período que compreende os últimos 10 mil anos). Nossos resultados sugerem que a espécie pode se beneficiar em termos de ganho de adequação climática no futuro, ou seja, a espécie tende a ter disponível um número maior de áreas climaticamente adequadas no futuro, principalmente na década de 2070 (Ver Figura 2). Estes resultados são muito parecidos com os já encontrados para uma outra espécie de abelha sem ferrão que também ocorre praticamente nas mesmas áreas, a abelha jandaíra (Melipona subnitida Ducke, 1910). Todavia, as projeções sugerem que, no futuro, a distribuição da abelha jandaíra expandirá em direção as bordas com uma consequente separação central de sua área atual13.

Figura 2. A esquerda se encontram os mapas de distribuição potencial de áreas climaticamente adequadas para Plebeia flavocincta no Último Interglacial (A), Último Máximo Glacial (B), no presente (C). A direita são os mapas de distribuição potencial de áreas climaticamente adequadas no futuro: (D) ano 2050 e RCP 4.5; (E) ano 2050 e RCP 8.5; (F) ano 2070 e RCP 4.5; e (G) ano 2070 e RCP 8.5. Os tons verdes representam áreas onde mais de um modelo se sobrepõe. RCP, em inglês, são os Caminhos Representativos de Concentração, ou seja, cenários futuros possíveis dependentes do nível de emissão de gases de efeito estufa na atmosfera. RCP 4.5 é um cenário moderado e o RCP 8.5 refere-se a um cenário em que as emissões continuam sempre aumentando.
Figura 2. A esquerda se encontram os mapas de distribuição potencial de áreas
climaticamente adequadas para Plebeia flavocincta no Último Interglacial (A), Último
Máximo Glacial (B), no presente (C). A direita são os mapas de distribuição potencial
de áreas climaticamente adequadas no futuro: (D) ano 2050 e RCP 4.5; (E) ano
2050 e RCP 8.5; (F) ano 2070 e RCP 4.5; e (G) ano 2070 e RCP 8.5. Os tons verdes
representam áreas onde mais de um modelo se sobrepõe. RCP, em inglês, são os
Caminhos Representativos de Concentração, ou seja, cenários futuros possíveis
dependentes do nível de emissão de gases de efeito estufa na atmosfera. RCP 4.5
é um cenário moderado e o RCP 8.5 refere-se a um cenário em que as emissões
continuam sempre aumentando.

Pela primeira vez, apresentamos a distribuição potencial atual da espécie e identificamos áreas de alta altitude (áreas de brejo de altitude) e a costa leste como habitats climaticamente estáveis para a abelha jati. Para essa espécie, estas áreas podem não sofrer mudanças quanto a disponibilidade de habitat, portanto, devido a essa potencial estabilidade, podem ser consideradas como áreas prioritárias para conservação dessa espécie.

Essas informações aqui apresentadas podem ser utilizadas por tomadores de decisão para apoiar ações de proteção e gestão sustentável dessa abelha pequena e comum no Nordeste. As medidas de proteção são particularmente importantes, uma vez que essa espécie pode ser utilizada como fonte de renda extra aos criadores. Ainda, com relação ao seu papel na polinização, existe um potencial a ser avaliado para seu uso na horticultura. Em um estudo sobre prospecção de polinizadores para o cacau, Theobroma cacao L. (Malvaceae), foi observado pólen de cacau, tanto nos potes de alimento como nas corbículas da abelha jati14. Embora nossos resultados indiquem que essa espécie possa encontrar uma área maior onde as condições ambientais para sobreviver são favoráveis, não podemos descuidar dos outros impactos antrópicos sobre as abelhas. Plantar árvores para sua nidificação e espécies nativas que fornecem o alimento necessário à sua sobrevivência na caatinga e arredores é sempre desejável. A sobrevivência dos polinizadores locais é essencial para a manutenção da nossa biodiversidade.

O texto completo está disponível na internet e é de livre acesso

Maia, U.M., Miranda, L.S., Carvalho, A.T., Imperatriz Fonseca, V.L., Oliveira, G.C., Giannini, T.C. Climate induced distribution dynamics of Plebeia flavocincta, a stingless bee from Brazilian tropical dry forests. Ecol Evol. 2020; 00: 1– 9. https://doi.org/10.1002/ece3.6674.

Referências

1Giannini, T.C. Acosta, A.L., Saraiva, A.M., Alves-dos Santos, I., De Marco Junior, P. (2012). Construção de cenários futuros para uso e conservação de polinizadores. In: Imperatriz-Fonseca, VL et al org. Polinizadores no Brasil, contribuição para a biodiversidade, uso sustentável, conservação e serviços ambientais. Disponível em: http://www.livrosabertos.edusp.usp.br/edusp/catalog/book/8. Acesso em 09 de setembro de 2020.

2Giannini, T.C. (2016) Cenário do impacto das mudanças climáticas sobre algumas espécies de abelhas polinizadoras do Brasil. Mensagem Doce, nº 138.Disponível em: https://apacame.org.br/site/revista/mensagem-doce-n-138-setembro-de-2016/artigo-2/. Acesso em 09 de setembro de 2020.

3Giannini, T.C., Costa, W.F., Borges, R.C., Miranda, L.S., Costa, C.P.W., Saraiva, A.M., Imperatriz-Fonseca, V.L. (2020). Mudanças climáticas poderão reduzir a disponibilidade de polinizadores na Amazônia Oriental. Mensagem Doce, nº 156. Disponível em: https://apacame.org.br/site/revista/mensagem-doce-n-156-maio-de-2020/artigo-2/. Acesso em 09 de setembro de 2020.

4Giannini, T.C., Costa, W.F., Borges, R.C. et al. (2020). Climate change in the Eastern Amazon: crop-pollinator and occurrence-restricted bees are potentially more affected. Reg Environ Change, 20, 9. Disponível em: https://doi.org/10.1007/s10113-020-01611-y. Acesso em 09 de setembro de 2020.

5Rasmussen, C. & Cameron, S.A. (2010) Global stingless bee phylogeny supports ancient divergence vicariance and long distance dispersal. Biol J Linn Soc, 99:206–232

6Pedro, S.R. (2014). The stingless bee fauna in Brazil (Hymenoptera: Apidae). Sociobiology, 61(4), 348-354.

7Camargo, J.M.F. & Pedro, S.R.M. (2013). Meliponini Lepeletier, 1836. In Moure, J. S., Urban, D., & Melo, G. A. R. (Orgs). Catalogue of Bees (Hymenoptera, Apoidea) in the Neotropical Region – online version. Disponível em: http://www.moure.cria.org.br/catalogue. Acesso em 09 de setembro de 2020.

8Maia, U. M., Jaffe, R., Carvalho, A. T., & Fonseca, V. L. I. (2015). Meliponiculture in Rio Grande do Norte. Brazilian Journal of Veterinary Medicine, 37(4), 327-333.

9Costa, C.A. (2014). Distribuição espaço-temporal de recursos florais e nicho trófico de Melipona subnitida e Plebeia aff. flavocincta (Apidae, Meliponini) em ambiente de caatinga. Tese. Ufersa.

10Ribeiro, M.D.F. & Taura, T.A. (2019). Presence of Plebeia aff. flavocincta nests in urban areas. Sociobiology, 66(1), 66-74.

11Martins, C.F., Laurino, M.C., Koedam, D., & Fonseca, V.L.I. (2004). Espécies arbóreas utilizadas para nidificação por abelhas sem ferrão na caatinga (Seridó, PB; João Câmara, RN). Biota Neotropica, 4(2), 1-8.

12Acosta, A.L., Giannini, T.C., Imperatriz-Fonseca, V. L., Saraiva, A.M. Mudanças climáticas na Caatinga com ênfase no Rio Grande do Norte: breve análise e síntese. In: Imperatriz-Fonseca, V. L., Koedam, D., & Hrncir, M. (org.). (2017). A abelha jandaíra no presente, no passado e no futuro. Edufersa, 254p. Disponível em: https://edufersa.ufersa.edu.br/wp-content/uploads/sites/27/2017/10/abelha-jandai%CC%81ra-livro-eletronico.pdf. Acesso em 09 de setembro de 2020.

13Giannini, T.C., Maia-Silva, C., Acosta, A.L., Jaffé, R., Carvalho, A.T., Martins, C. F., … & Siqueira, J.O. (2017). Protecting a managed bee pollinator against climate change: strategies for an area with extreme climatic conditions and socioeconomic vulnerability. Apidologie, 48(6), 784-794.

14Lemos, C.Q. Abelha Plebeia cf. flavocincta como potencial polinizador do cacaueiro (Theobroma cacao L.) no semiárido brasileiro. 2014. 71p. Dissertação (mestrado em zootecnia) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza-CE, 2014.