O mel e o tal “terroir”

Clau Gavioli (ou Maria Cláudia Gavioli) é jornalista, mestre em hospitalidade e pesquisadora de comida. Ela é editora do site e apresentadora do podcast Minestrone (www.minestrone.com.br).

Abertura-GastronomiaNos mais diversos campos de estudos é recorrente encontrar associações ou apropriações de conceitos e termos de uma disciplina para outra. Isso ocorre porque a observação leva a comparações que permitem, por exemplo, usar uma expressão da biologia ou da matemática para fenômenos observados nas humanidades ou vice-versa.

Sem nenhum objetivo de ajuizar essa prática, atrevo-me a pensar que o uso do termo terroir na gastronomia para produtos como café, azeite, queijo, presunto e, entre outros, o mel, é uma dessas apropriações do que antes era comum apenas no universo dos amantes do vinho.

Por princípio, terroir significa uma porção de terra cultivada. A expressão vem do idioma francês, tendo o radical terr, que origina terre (terra), terrain (terreno), etc. No entanto, o uso da expressão terroir leva em consideração as características do solo, do microclima e da cultura de uma determinada área de cultivo que interferem e diferenciam os produtos provenientes desse espaço ou localidade.

Um artigo publicado em maio de 2021 no site da Wine*, o terroir do vinho é “algo como um DNA daquela bebida, ou até mesmo a preservação de uma biodiversidade sociocultural.”

Oras, isso então torna mesmo sugestiva a assimilação e extrapolação desse conceito para outros itens que não o vinho. Os demais produtos citados anteriormente também têm o seu DNA e prezam pela preservação de suas culturas.

Ainda que a palavra terroir venha sendo usurpada como mais uma forma de “gourmetizar” um termo para usos mercadológicos, sugiro tomar para a expressão uma chave de leitura que se refere à valorização da origem dos produtos.

Pensar no terroir de um mel é buscar valorizar a sua procedência, a identidade única desse produto. É o como ler as letras miúdas nas quais estão presentes informações sobre a história que diferencia indubitavelmente um produto de outro, evitando uma pasteurização das características organolépticas daquele mel.

Não sei se é um mal somente dos nossos tempos, já que não vivi outros para constatar e a história sempre nos é contada pelos vitoriosos, nunca pelos vencidos, mas as falsificações estão por toda parte. O mercado mundial do mel não está fora desse tipo de fraude. A alta demanda e o preço do produto tornaram, há tempos, o mel um dos itens de maior adulteração entre os vendidos no planeta.

Numa explicação simples, os meles de produtores diversos são comprados e misturados entre si, o que já modifica suas características especificas, mas, a essa mistura são adicionados outros itens mais baratos para a indústria com o objetivo de aumentar o volume e gerar maior rendimento, além de uma padronização dos sabores, aromas e cores do mel que é envazado e vendido como produto puro. Como em todo tipo de falsificação, perde quem consome, ou seja, o consumidor paga até mais barato, mas com o que acredita que seja mel, mas leva algo que ele não sabe ao certo o que é.

Voltando então ao terroir: levá-lo em conta pode ser muito mais do uma mera gourmetização marqueteira. Trata-se de saber sobre um mel, de onde ele foi colhido, em que região, por quais produtores que cultivam e cuidam de quais abelhas que se alimentaram do néctar de quais floradas de que plantas sob que condições etc. etc.

Evitando polemizar a produção do mel a partir de quais abelhas eles são produzidos, se nativas ou europeias, novamente me arrisco a dizer que todo mel tem terroir, indistintamente já que ele é resultante do trabalho de operárias de colmeias que se alimentaram do néctar de plantas de determinados locais que guardam características próprias. Como produto vivo ou orgânico que é, o mel pode mudar de uma florada para outra, mesmo que seja proveniente das mesmas colmeias, porque as abelhas se nutrem das plantas que estão disponíveis naquele período. Visando o que o produto puro, mas sem excesso de purismos e hierarquizações entre os tipos de abelhas, o reconhecimento dos terroires é a garantia da qualidade para os produtores.

Existe uma frase que vem sendo fortemente recomendada a consumidores que se atém só ao preço do produto, sem lembrar de sua origem e qualidade: “pense global, compre local (ou regional). Seis palavras que podem salvar o planeta.

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