Ciência ajuda meliponicultores paraenses a conquistar seu primeiro selo de inspeção federal
Fonte: Embrapa Amazônia Oriental – Kélem Cabral (MTb 1981/PA) –
A maior produção de mel de abelhas-sem-ferrão no Pará alcançou, com o auxílio de pesquisadores da Embrapa Amazônia Oriental, os parâmetros físico-químicos para aquisição do selo do Serviço de Inspeção Federal (SIF). A chancela abre acesso à comercialização do produto em todo o Brasil e até no exterior.
As cerca de uma tonelada e meia de mel da abelha uruçu (Melipona flavolineata) foram colhidas por dezenas de meliponicultores de várias regiões do estado e é a primeira vez que uma produção paraense consegue se habilitar às normas do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Esse feito inédito da meliponicultura no Pará atesta a adequação da produção à regulamentação e com isso abre o acesso ao mercado formal de consumo em todo o País e até para a exportação. “Esse era um elo que faltava para a consolidação e fortalecimento da cadeia produtiva do mel de abelhas nativas no estado”, frisa Daniel Santiago, pesquisador da Embrapa.
O cientista conta que a produção de mel a partir das abelhas melíponas, também conhecidas como sem ferrão, nativas ou indígenas, sempre ocorreu no Pará, mas nas últimas décadas tem conquistado novos produtores e avançado na profissionalização da criação.
Produção grande estava sem registro
No fim de 2018, cerca de 100 produtores paraenses organizados por meio do Instituto Peabiru conseguiram colher uma tonelada e meia de mel e o feito inédito para a cultura no estado esbarrou na legislação. Conforme o Regulamento Técnico de Identidade e Qualidade do Mel, previsto na Instrução Normativa Nº 11, de 20 de Outubro de 2000, do Mapa, são necessários parâmetros e normas específicas para que o produto seja considerado mel e ingresse no mercado formal e acesse o selo do Serviço de Inspeção Federal, fator determinante para a industrialização e comercialização nacional. Como não existem dados oficiais no estado, não é possível estimar o número de meliponicultores no Pará e toda produção, até então, era comercializada informalmente nas feiras dos municípios.
Protocolo de adequação do mel
O engenheiro químico Marcos Enê Chaves Oliveira, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental, explica que a Empresa foi procurada pelo Instituto Peabiru com a demanda de estabelecer um protocolo que adequasse o mel colhido pelos produtores familiares às normas federais. Isso porque a legislação que rege o produto foi elaborada com base no mel de apis (Apis mellifera), abelhas exóticas com ferrão introduzidas no Brasil e que fornecem a maior quantidade de mel comercializado em todo o mundo.
Uma das principais diferenças que a pesquisa foi provocada a resolver estava no parâmetro que mede a umidade (quantidade de água) presente no produto. O mel de apis, comenta o cientista, possui naturalmente cerca 20% de umidade, enquanto o mel de abelhas-sem-ferrão pode ultrapassar os 30%. “Isso não é ruim, mas uma característica natural do mel produzido por essa espécie. No entanto, a legislação estabelece, entre outras normas, que a umidade presente no mel seja inferior a 20%”, enfatiza.
Um problema relativamente simples de solucionar, mas que continha uma “pegadinha”. Marcos Enê relata que para desumidificar o mel até o teor de 20% exigido, se fazia necessário um processo de aquecimento que gerou outro desafio. Ao ser aquecido, o teor de uma molécula presente no mel, chamada hidroximetilfurfural (HMF), tende a aumentar. Só que a norma também estabelece limites máximos para o HMF. “Tivemos que concentrar os esforços em descobrir o equilíbrio necessário para desumidificar o mel em tempo e temperatura, sem que os níveis de HMF fossem superiores 60 meq.kg (miliequivalente por quilo), conforme prevê a legislação”, revela o pesquisador.
Para se chegar a esse equilíbrio foram necessários cerca de seis meses de tentativas e diversas análises em laboratório. Marcos Enê conta que o passo a passo para se conseguir a umidade abaixo dos 20% sem que o HFM ultrapasse os 60 meq.kg estará disponível em nota técnica a ser lançada este ano. “Essa padronização abre a possibilidade de que produtores de todo estado possam se habilitar à aquisição do SIF, fortalecendo a cadeia produtiva”, comemora o pesquisador.
O protocolo é um dos resultados do Agrobio, integrante do Projeto Integrado para a Produção e Manejo Sustentável do Bioma Amazônia, financiado com recursos do Fundo Amazônia.
Meliponicultores alcançam selo de inspeção federal com apoio da Embrapa
Padronizado sem perder o terroir
O mel produzido pelas abelhas-sem-ferrão se difere do mel comercial de apis em sabor, textura e fluidez. Também apresenta potenciais propriedades medicinais e cosméticas. “Por ter mais umidade, o mel é mais fluído e de sabor mais ácido, azedinho, uma característica muito apreciada no mercado”, detalha o pesquisador Daniel Santiago, líder do Agrobio.
Ele pondera que uma das preocupações dos pesquisadores, assim como dos produtores e da indústria, é que a padronização à legislação federal retirasse do produto características que lhe são únicas, como a fluidez, por exemplo, e que esse processamento impactasse também no sabor, anulando ou diminuindo algo com forte apelo comercial e sensorial para o mercado gastronômico, o chamado terroir, essa característica de algo que é único, inigualável.
Para que essa identidade do produto se mantenha, a Embrapa tem atuado em diversas frentes para a profissionalização da cadeia, inclusive na elaboração de projeto de lei estadual e em comitês intergovernamentais na esfera federal. O problema imediato da padronização já tem protocolo para ser resolvido, mas é necessária legislação própria, nacional e estadual, que garanta o produto com todas as suas especificidades e também proteja os meliponários e seus criadores, de acordo com o cientista.
Isso porque, segundo a legislação vigente, as abelhas nativas são consideradas animais silvestres e cada criador só pode ter 49 colmeias, número inviável comercialmente, pois as melíponas possuem famílias menores e proporcionalmente, produzem menos mel. “Enquanto a caixa de apis possui, em média, 120 mil indivíduos e produzem entre 15 e 30 litros anuais por colmeia, as melíponas abrigam cerca de cinco mil e sua produção varia de um a cinco litros por ano”, explica Santiago.
Hermógenes Sá, coordenador do projeto Néctar da Amazônia, do Instituto Peabiru, instituição responsável pela organização dos produtores e da colheita histórica, acredita que a padronização à norma federal não retira o terroir do mel de abelha sem ferrão. “Ela permite que esse produto da Amazônia seja conhecido e comercializado para além as fronteiras locais”, prevê ele, frisando que esse mel traz muito mais que um sabor diferenciado.” Ele agrega preservação ambiental e organização social das comunidades tradicionais envolvidas. É abertura de mercado para um produto diferenciado e garantia de renda e organização para as comunidades”, reitera Sá.