PROF. WARWICK ESTEVAM KERR, UM DOS MAIORES EXEMPLOS DE CIDADANIA, AMOR À CIÊNCIA E AMOR AO PRÓXIMO.
Lionel Segui Gonçalves – Professor Titular aposentado da USP-Ribeirão Preto-SP, Pesquisador Visitante Voluntário da UFERSA-Mossoró-RN e Presidente da Ong “BEE OR NOT TO BE”.
E-mail: lsgoncal@ffclrp.usp.br
A tristeza que me encontro para redigir este texto, homenagem póstuma sobre o falecimento no ultimo dia 15/9/2018 de meu querido Mestre, Pai científico e Amigo, Prof. Dr.Warwick Estevam Kerr, meu orientador de doutorado na USP, não é maior que a alegria e o grande prazer que sinto em enaltecer as qualidades desse homem do bem, honrado, religioso, exemplar pai de família. Sua vida representa para mim um dos maiores exemplos de cidadania, amor à ciência e amor ao próximo. O Brasil perde um de seus mais importantes cientistas e a Apicultura e Meliponicultura brasileira deixam de contar com um de seus mais importantes incentivadores.
As entidades científicas e de apoio à ciência como a Sociedade Brasileira de Genética, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência das quais foi Presidente, a Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo da qual foi o primeiro Diretor Científico, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia do qual foi Presidente por duas vezes, são instituições que registram sua dedicação e administração em prol da ciência. Várias instituições universitárias como a Universidade Federal do Maranhão, a Universidade Federal de Uberlândia também contou com as atividades de ensino, pesquisa e extensão do Prof. Kerr e também a Universidade Estadual do Maranhão onde ele foi reitor.
Dois anos após ter se formado como engenheiro agrônomo na ESALQ – Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, de Piracicaba, USP, concluiu seu doutorado sobre genética de abelhas sem ferrão e em seguida foi convidado como docente pelo Instituto Isolado ou Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Rio Claro-SP (posteriormente UNESP), tendo ali criado o Departamento de Biologia. Ainda como docente da Biologia o Prof. Kerr foi convidado pelo então Governador Carvalho Pinto, a ocupar o cargo de primeiro diretor cientifico da recém-criada FAPESP – Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo, tendo sido o responsável pelas eficientes normas e diretrizes que tornaram a FAPESP uma entidade exemplar de apoio à ciência e a pesquisa do Estado de São Paulo, modelo copiado posteriormente por outros estados do Brasil.
Mais tarde e ainda como diretor cientifico da Fapesp e mesmo não sendo médico, recebeu um convite desafiador, do diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP, para fundar o Departamento de Genética da FMRP. Nesse departamento criou o setor de genética de abelhas, do qual fui seu primeiro responsável como doutorando do Prof. Kerr, sendo mais tarde criados outros setores.
É importante destacar que antes da chegada do Prof. Kerr os conhecimentos de genética eram ensinados aos alunos de medicina em alguns capítulos de disciplinas do Departamento de Morfologia. Com a criação do Departamento de Genética foi criada a primeira disciplina de genética ministrada num curso de medicina no Brasil, ministrada então pelo engenheiro agrônomo e seus colaboradores. Graças à capacidade de aglutinação de pesquisadores interessados em genética pelo Prof. Kerr vários pesquisadores de outras unidades da USP passaram a integrar sua equipe e a trabalhar sob um mesmo teto, formando-se então o “Primeiro Laboratório Integrado de Genética da USP” em Ribeirão Preto, integrando fisicamente e por interesses comuns, docentes da FMRP, da Faculdade de Filosofia e da Faculdade de Odontologia.
Todos trabalhavam de maneira integrada em cursos de graduação e pós-graduação e todos desenvolviam conjuntamente projetos de pesquisas e serviços de extensão, numa verdadeira harmonia proporcionada pelo entusiasmo do Prof. Kerr, que sempre afirmava que a união faz a força. Eu por exemplo, apesar de ter sido docente da Faculdade de Filosofia e inclusive ter sido Diretor daquela unidade da USP, nunca tive sala ou laboratório nas dependências da Filosofia, trabalhando sempre no Departamento de Genética onde fiz meu doutorado e defendi minha livre docência e apesar de ter realizado meu concurso de Titular na Faculdade de Filosofia, graças a essa integração Inter unidades sempre continuei no Departamento de Genética.
Para demonstrar um dos resultados positivos dessa integração relato que o Departamento de Genética da FMRP, por ocasião de seus 40 anos de atividades, em 2011, já tinha mais de 700 titulações (326 mestrados e 367 doutorados) 30% das quais sobre temas relacionados a abelhas, além de inúmeros “papers” publicados nas mais importantes revistas cientificas do país e exterior, sendo na ocasião um dos Departamentos mais produtivos da FMRP e da USP.
Portanto, a substanciosa relação de obras educacionais e publicações cientificas, ampla relação de orientados e colaboradores no Brasil e no exterior formam o valiosíssimo currículo do Prof. Kerr, digno de constar nas mais importantes bibliotecas de nosso pais, como modelo e exemplo de dedicação. Sua defesa pelos injustiçados, que lhe ocasionaram inclusive perseguições e prisões políticas, juntamente com suas obras cientificas e educacionais, representam um legado de ações que raramente alguém deixa, se não tiver dotado das melhores qualidades intelectuais e humanísticas possíveis em um ser humano.
Agora, relacionado à obra científica sobre as abelhas desejo fazer alguns comentários. Durante os meus 55 anos de carreira intensamente vividos ao lado do Prof. Kerr como seu discípulo e seguidor, trabalhando com as abelhas africanizadas, colaborei e testemunhei sua inquieta, intensa e permanente vontade de ajudar os apicultores a superar os problemas surgidos com a introdução das abelhas africanas no Brasil e a desenvolver a meliponicultura no país. Embora a maioria de suas publicações tenham sido sobre as abelhas sem ferrão, sua vida foi marcada e registrada internacionalmente com enfoque na introdução das abelhas africanas no Brasil e suas consequências.
De 1963 até os dias de hoje tive o grande privilégio de acompanhar e testemunhar todas as fases da africanização das abelhas no Brasil, conhecidas pela mídia como “killer bees”, em especial no “período caótico” que foi principalmente de 1964 a 1980 quando ocorreram com maior frequência os acidentes com mortes de animais e pessoas. Fui, na ocasião, testemunha da sua ansiedade, sofrimento e profundo desejo de encontrar uma solução para a agressividade dessas abelhas descendentes das rainhas trazidas da África pelo Professor e introduzidas no Brasil em 1956.
Não foram dias fáceis, muitos dos quais inesquecíveis, principalmente quando nos chegavam notícias da mídia apontando mortes de animais e pessoas e sempre direcionadas ao introdutor das abelhas como o principal responsável. Na ocasião a mídia foi massacrante e sempre admirei o comportamento sereno do Mestre, apesar da tensão reinante que, sem duvida, somente uma pessoa altamente equilibrada e dotada de sérios princípios e convicções religiosas poderia resistir. Lembro-me que na ocasião sua orientação principal a nós, seus colaboradores na missão, era sempre direcionada aos estudos e métodos de manejo das abelhas, para que pudéssemos controlar essas abelhas uma vez que sua biologia era totalmente desconhecida na ocasião.
Sua persistência na direção de se controlar a agressividade das abelhas pelo manejo já era fruto de sua experiência cientifica e, em minha opinião, hoje constato que ele estava correto, pois, como não conhecíamos a biologia dessas abelhas e esse conhecimento demandava muito mais tempo e pesquisas, restava fazer algo mais imediato relacionado ao manejo. Graças aos estudos de manejo aos poucos seus colaboradores, técnicos e orientados, tanto da Genética como de outras instituições, gradativamente descobriam mais variáveis que interferiam na redução do comportamento agressivo das abelhas, destacando aqui, por exemplo, um bom uso dos fumegadores, maior espaçamento entre as colmeias, não manipulação das abelhas em dias chuvosos, uso de vestimentas claras, etc., tudo isso devidamente testados cientificamente.
Na ocasião trabalhávamos sempre sob pressão da mídia e eu sentia que o Mestre sofria a cada notícia de acidente com abelhas, porém tenho a certeza que seus princípios religiosos e seu amor a um ente superior, nosso Deus, era o único esteio que o mantinha esperançoso de dias melhores.
Muitos métodos científicos para reduzir a agressividade das abelhas foram utilizados como irradiações com bomba de cobalto com o objetivo de obter mutantes mais mansos, as milhares de rainhas italianas que distribuímos para hibridizar as colônias de abelhas em direção a uma linhagem mais mansa que o querido mestre pretendia obter para distribuir aos apicultores.
É importante comentar que durante o período compreendido da introdução das abelhas africanas aos dias de hoje houve sempre uma evolução significativa da apicultura brasileira.
Antes da chegada das africanas ao Brasil em 1956 a produção apícola nacional oscilava em torno de 4 a 5 mil toneladas de mel por ano e a apicultura era desenvolvida com abelhas europeias introduzidas anteriormente pelos europeus no país. A apicultura era mais como hobby, tendo as técnicas apícolas uma grande influência europeia, principalmente dos alemães que vieram colonizar o sul do Brasil. A baixa produtividade da apicultura brasileira na década de 50 comparada com a superior produção apícola de países vizinhos ao Brasil como a Argentina, levaram o Prof. Kerr a fazer um estudo sobre as raças de abelhas, tendo ele constatado que na África existiam abelhas mais produtivas que as europeias introduzidas no Brasil, tendo então decidido importar as abelhas africanas Apis mellifera scutellata em 1956.
As características das africanas que mais atraíram o Prof. Kerr foram a alta produtividade, alta capacidade de adaptação, a resistência a doenças e alta taxa de enxameação, tendo ele planejado fazer uma seleção das características mais importantes antes de distribuir aos apicultores brasileiros. As rainhas importadas pelo Prof. Kerr foram introduzidas em colmeias que possuíam abelhas europeias no Horto Florestal de Camacuam, no Município de Rio Claro –SP onde ficaram em quarentena.
No entanto um apicultor visitante ao constatar que as abelhas estavam perdendo grãos de pólen na entrada das colmeias, devido às telas excluidoras de rainhas e zangões instaladas na entrada das colmeias, resolveu tirar as telas sem avisar o Prof. Kerr, que tomou conhecimento somente quando já haviam sido iniciadas as enxameações. As enxameações e as consequentes africanizações das abelhas deu origem às descendentes, abelhas polihíbridas africanizadas, porém antes do Prof. Kerr fazer a seleção programada.
A partir de 1956 ocorreu a africanização das abelhas e os acidentes se repetiam com frequência, principalmente devido a falta de conhecimento dos métodos de manejo dessas abelhas, sendo que aproximadamente de 1964 a 1980 ocorreu praticamente o auge dos acidentes, tendo ocorrido então o “caos da apicultura brasileira”.
Houve inicialmente uma redução da produção apícola onde as abelhas chegavam, devido ao abandono da atividade apícola por muitos apicultores, em face da agressividade das abelhas.
Na década de 60 foi criada no Rio Grande do Sul a Confederação Brasileira de Apicultura, da qual participou o Prof. Kerr e em seguida os apicultores do sul do Brasil iniciaram as discussões do que fazer com essa nova e desconhecida abelha.
Assim, em 1970 foi realizado o Primeiro Congresso Brasileiro de Apicultura, em Florianópolis – SC, e do qual toda a equipe do Prof. Kerr tomou parte, sendo o tema principal do referido congresso a “agressividade”. A partir desse congresso houve muita ação apícola nas Associações de apicultores e reuniões científicas em vários centros universitários em varias regiões do Brasil e com grande destaque nos laboratórios da USP de Ribeirão Preto, sob a liderança do Prof. Kerr e seus colaboradores.
De 1970 a 1980 houve um grande salto de conhecimentos sobre a biologia e sobre o manejo das abelhas africanizadas, principalmente com a contribuição dos cursos de pós-graduação iniciados em 1971 e que deram uma grande contribuição até os dias de hoje.
De 1980 a 1990 os temas principais dos congressos brasileiros de apicultura já não mais tratavam da agressividade das abelhas e o associativismo foi muito incentivado em vários estados do pais, aumentando gradativamente a produção apícola nacional e gradativamente o tema “agressividade das abelhas” vinha sendo reduzido na mídia. No entanto, lembro-me que, apesar dessa redução da agressividade das abelhas e da diminuição da pressão da mídia, numa ocasião em 1980 meu querido Mestre comentou: Será que algum dia eu conseguirei me livrar desse terrível trauma que é a agressividade dessas abelhas?
De 1990 a 2000 a apicultura brasileira progrediu consideravelmente tendo nossa produção apícola atingido a quantidade de 40 mil toneladas de mel/ano. Embora a situação da apicultura brasileira tenha melhorado consideravelmente a partir de 2000, o nordeste brasileiro que anteriormente não aparecia nas estatísticas de produção apícola passava então a figurar como uma região produtora de mel e responsável por aproximadamente 1/3 da produção apícola nacional.
Aparentemente a apicultura em nosso país parecia estar numa nova fase de expansão. No entanto em 2009 a APIMONDIA – Federação Internacional de Apicultores fez um alerta em seu congresso mundial de apicultura da França sobre o perigo oferecido pelos pesticidas a apicultura francesa e o risco do mesmo ocorrer em outros países.
Infelizmente já a partir de 2012 a apicultura e a meliponicultura brasileira começaram também a sofrer a ação do uso de pesticidas na agricultura, ocorrendo a morte de abelhas. Com isso nova batalha surgia, a luta contra os pesticidas e o tema agressividade das abelhas passava a ser substituído pelo tema pesticidas e a morte das abelhas.
Atualmente praticamente todos os estados brasileiros apresentam perdas de abelhas (morte e desaparecimento das abelhas ou CCD – Collony Colapse Disorder) devido ao uso indiscriminado dos pesticidas, em especial os sistêmicos neonicotinoides e o fipronil, sendo hoje o principal problema da apicultura e meliponicultura brasileira. Na Europa, Estados Unidos e outros países atribui-se a morte das abelhas e o CCD principalmente ao acaro Varroa destructor.
Entretanto, no Brasil as perdas não são atribuídas ao acaro e sim aos pesticidas. A resistência das abelhas africanizadas ao acaro Varroa destructor dá-se devido aos genes recessivos do comportamento higiênico que é genético e isso evita o uso de acaricidas contra essa praga. Portanto, não existem estatísticas de perdas de colmeias devido a varroatose no Brasil.
Por outro lado, há vários anos e por várias vezes já ouvi comentários no seguinte teor: que fantástico como esse professor introdutor das abelhas africanas no Brasil teve essa visão maravilhosa de introduzir no Brasil essa abelha produtiva e altamente resistente a doenças e pragas.
Com isso a apicultura vem crescendo no país a cada ano, a produtividade já ultrapassa as 50 mil toneladas de mel ao ano, nosso mel é considerado de excelente qualidade e grande parte é orgânico e afirmo que a agressividade não é mais o principal problema da apicultura.
Caro Mestre, aquela sua pergunta, se um dia você conseguiria se livrar do trauma da agressividade das abelhas africanizadas, já foi devidamente respondida. Portanto meu querido “Dr. Kerr”, como um de seus seguidores, kerzista com muito orgulho e especialista em genética de abelhas africanizadas, com muita humildade e segurança, reafirmo que VOCE CONSEGUIU.
Descanse em paz sob a proteção divina de quem você sempre confiou e acreditou, no nosso Deus. Aqui fica minha mais pura e sincera homenagem póstuma a este grande cientista brasileiro.